“Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz; vós, sim, que, antes, não éreis povo, mas, agora, sois povo de Deus, que não tínheis alcançado misericórdia, mas, agora, alcançastes misericórdia” (1Pe 2.9-10).
Este texto da Primeira Carta de Pedro, capítulo 2, é uma passagem importante frequentemente utilizada pelos teólogos da substituição em seu esforço para afirmar que a Igreja substituiu Israel, tornando-se o “Verdadeiro Israel”. Por exemplo, o comentarista Peter Davis diz:
Esta posição é descrita por se transferir para a igreja os títulos de Israel encontrados no Antigo Testamento (pois a igreja é o verdadeiro remanescente de Israel, como indica o uso dos títulos de Israel em 1.1).
Outro autor diz:
Já não é dito que o povo escolhido de Deus é aquele que descende fisicamente de Abraão, pois os cristãos são agora a verdadeira “raça eleita” (...). O que mais poderia ser necessário para se afirmar com certeza que a igreja agora se tornou o verdadeiro Israel de Deus?
Ainda outro afirma:
Pedro prossegue em aplicar à igreja título após título que fora conferido ao antigo Israel, tendo a igreja como o novo Israel de Deus (...) Nada poderia mostrar mais claramente do que estes dois versículos [1Pe 2.9-10] a afirmação da igreja cristã primitiva de ser o verdadeiro povo de Deus, herdeira de todas as promessas feitas ao antigo Israel.
Creio que tais intepretações desta passagem estão erradas e que não há no Novo Testamento nenhum texto que afirme que a Igreja substituiu Israel. Certamente 1 Pedro 2 não afirma isto!
A Quem Pedro Escreveu?
A interpretação que uma pessoa dá à Epístola de Pedro é determinada (pressupondo que tal pessoa seja consistente com a aplicação de seu ponto de partida) por aqueles a quem Pedro está escrevendo. Pedro diz: “Pedro, apóstolo de Jesus Cristo, aos eleitos que são forasteiros da Dispersão no Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia” (1Pe 1.1).O Apóstolo Paulo nos diz que Pedro era o Apóstolo para o povo judeu: “Antes, pelo contrário, quando viram que o evangelho da incircuncisão me fora confiado, como a Pedro o da circuncisão (pois aquele que operou eficazmente em Pedro para o apostolado da circuncisão também operou eficazmente em mim para com os gentios) (...)” (Gl 2.7-8). Pedro descreve aqueles a quem ele está escrevendo como “forasteiros” e “dispersos” por toda aquela região que hoje conhecemos como Turquia. Forasteiro é alguém que não procede originalmente do local de sua residência. Um léxico grego diz que a palavra se refere a “estar por um tempo em um lugar estranho, permanecendo ali ou residindo ali temporariamente”.A próxima palavra traduzida por “Dispersão” é a palavra grega da qual obtemos o conhecido termo “diáspora”, que fala sobre os judeus vivendo fora de Israel, nas nações gentias. O léxico grego define esta palavra como “estado ou condição de ser espalhado, disperso, diáspora”.A única outra vez que ela é usada no Novo Testamento em grego é em Tiago 1.1: “Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo, às doze tribos que se encontram na Dispersão, saudações”. Claramente, Tiago estava escrevendo para judeus crentes.
Parece muito claro, a partir da afirmação de abertura de Pedro, que ele está escrevendo esta carta a cristãos judeus, assim como Tiago o fez também. Arnold Fruchtenbaum observa corretamente:
Das vinte e uma epístolas do Novo Testamento, cinco foram escritas a crentes judeus tratando das necessidades dos crentes judeus e de questões específicas que os crentes judeus estavam enfrentando. Há coisas nessas epístolas que são aplicáveis a todos os crentes, mas algumas são verdadeiras somente sobre crentes judeus. Estas cinco epístolas são: Hebreus, Tiago, 1 e 2 Pedro e Judas.
É interessante que a maioria dos Pais da Igreja primitiva também concordava que 1 Pedro tivesse sido escrita aos crentes judeus espalhados por todas as regiões citadas, no que é a Turquia dos tempos atuais.
Com umas poucas exceções, os Pais criam que esta carta foi escrita pelo apóstolo Pedro e enviada a cristãos judeus na Diáspora (Euzébio de Cesaréia, Dídimo, André, Ecumênios). Eles reconheciam que a carta possui semelhanças próximas a Tiago e explicavam isto dizendo que tanto Pedro quanto Tiago eram apóstolos aos judeus, embora Pedro pareça ter se concentrado mais naqueles que viviam fora da Palestina (André).
Fica claro que Pedro, um apóstolo que fora especificamente chamado para ministrar aos judeus, está escrevendo uma carta para encorajar os crentes judeus que estavam na Diáspora. Não faz sentido falar que os crentes gentios são forasteiros se eles estão vivendo em nações gentias. Mas faz muito sentido falar que os crentes judeus são forasteiros vivendo em terras gentias, provavelmente vivendo ali desde sua dispersão provocada pelos assírios e babilônios. Fruchtenbaum explica:
Deve-se ter em mente que Pedro está escrevendo a crentes judeus. Por toda a Escritura, há sempre dois “Israéis”: Israel, o todo, que compreende todos os judeus; e Israel, o Remanescente, que compreende somente os judeus crentes. Aqui, Pedro distingue entre o Remanescente e o Não-Remanescente. A Teologia da Substituição, entretanto, baseia-se nesta passagem como prova de que o verdadeiro Israel é a Igreja.
Se alguém entende que essa epístola foi escrita a cristãos judeus, então esta será uma questão-chave para que tal pessoa entenda as afirmações apresentadas no capítulo 2 de 1 Pedro. Se uma pessoa crê, a despeito das evidências, que ela é uma epístola geral, escrita para a Igreja como um todo, isto também vai explicar como tal pessoa entende o capítulo 2 de maneira diferente.
O Israel de Deus
Pedro estava escrevendo aos crentes judeus e informando-os do fato de que, por eles terem aceitado Jesus como seu Messias, haviam recebido a benção plena dada pelo Senhor a um membro da nação eleita por Deus – Israel. Todavia, os teólogos da substituição tentam usar 1 Pedro 2 como prova de que a Igreja substituiu Israel para sempre.
Deus irá, deveras, cumprir todas as promessas feitas a Israel, muito embora durante a Era da Igreja Ele esteja combinando judeus eleitos e gentios em um corpo único e co-igual (Ef 2.11-12).
“Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz; vós, sim, que, antes, não éreis povo, mas, agora, sois povo de Deus, que não tínheis alcançado misericórdia, mas, agora, alcançastes misericórdia” (1Pe 2.9-10). Embora muitos exemplos de interpretações que a Teologia da Substituição dá a esta passagem pudessem ser citados, mencionarei somente um exemplo. Diz Paul Achtemeier:
A descrição dupla da nova comunidade (1Pe 2.5; 2.9-10) mostra por meio de sua linguagem que a Igreja agora tomou posse do papel de Israel.
A Teologia da Substituição afirma: como termos que foram claramente usados para Israel são citados nessa epístola do Novo Testamento, segue que esses termos se aplicam à Igreja; assim, a Igreja substituiu Israel. Não há dúvida de que uma linguagem clara do Antigo Testamento, usada no primeiro testamento em relação a Israel, seja usada em 1 Pedro 2. Esses termos incluem: “raça eleita”, “sacerdócio real”, “nação santa”, “povo de propriedade exclusiva de Deus” (1Pe 2.9). Contudo, como Pedro está escrevendo para “o Israel de Deus”, ou seja, para os crentes judeus, ele está listando essas descrições do Antigo Testamento sobre Israel para que eles saibam que tudo o que lhes foi prometido no Antigo Testamento está sendo cumprido por meio da fé em Jesus, como o Messias deles. Isto é justaposto por uma comparação com os judeus não-crentes, que não haviam confiado em Jesus como o Messias de Israel, mencionados nos versículos 7-8. Pedro fala da “pedra que os construtores rejeitaram” (1Pe 2.7) como uma provável referência à liderança judaica que levou a nação a rejeitar Jesus como o Messias. Além disso, Pedro descreve os judeus não-crentes como aqueles que viram Jesus como “pedra de tropeço e rocha de ofensa” (1Pe 2.8a). Ele observa a respeito desses judeus não-crentes: “São estes os que tropeçam na palavra, sendo desobedientes, para o que também foram postos” (1Pe 2.8b).
Um contraste claro é observado à medida que o versículo 9 começa: “Vós, porém...”. Em contraste com os judeus não-crentes, os judeus crentes serão, de fato, beneficiários das bênçãos do Antigo Testamento, decretadas para a nação de Israel, por meio da fé em Jesus. Assim, essas quatro descrições no versículo 9 não estão sendo transpostas para a Igreja; em vez disso, elas são reiteradas aos crentes judeus dentro da Igreja, pelo Apóstolo aos Circuncidados. Fruchtenbaum explica:
É importante reconhecer que o contraste que Pedro faz aqui não é entre a Igreja e Israel, ou entre crentes e não-crentes, ou entre judeus não-crentes e gentios crentes. Em vez disso, o contraste aqui é entre o Remanescente de Israel e o Não-Remanescente de Israel. A afirmação de Pedro é que, embora Israel como um todo tenha fracassado em cumprir com o seu chamado, o Remanescente de Israel não fracassou em cumprir com o seu chamado.
A seguir, Pedro explica sua afirmação, à medida que ele se move para o versículo 10, onde se refere ao profeta Oséias, do Antigo Testamento. Um dos filhos ilegítimos de Gômer tinha o nome de “Lo-Ami” (Os 1.9, ACF), que em hebraico significa “Não-Meu-Povo”. A criança recebeu esse nome porque era fruto não de Oséias, marido de Gômer, mas da prostituição de Gômer. Como Oséias é um tipo de Deus naquele livro, o Senhor está dizendo que nem todos os filhos de Israel são Seus descendentes. (Entendo que esta é a maneira que Deus usa para dizer que muitos dentro do Israel nacional eram incrédulos em relação à sua salvação individual, embora ainda fizessem parte do Israel nacional). Contudo, o versículo seguinte logo diz: “Todavia, o número dos filhos de Israel será como a areia do mar, que se não pode medir, nem contar; e acontecerá que, no lugar onde se lhes dizia: Vós não sois meu povo, se lhes dirá: Vós sois filhos do Deus vivo” (Os 1.10). Isto é muito semelhante ao que Pedro está dizendo em 1 Pedro 2.10 sobre os crentes judeus de seus dias. Novamente, Fruchtenbaum explica:
O contexto de Oséias trata de Israel. Por um determinado tempo, Israel, pelo menos experimentalmente, não seria o povo de Deus. Entretanto, no futuro, quando Israel passar pela salvação nacional, novamente se tornará meu povo. O que será verdadeiro sobre Israel como nação no futuro é verdadeiro sobre o Remanescente de Israel no presente, a saber, experimentalmente eles se tornaram o povo de Deus novamente porque são membros do Remanescente crente.
Conclusão
Embora muito mais poderia ser dito sobre 1 Pedro 2, fica abundantemente claro que a passagem não apóia nenhuma forma de Teologia da Substituição. Pelo contrário, fala de um cumprimento das promessas de Deus feitas no Antigo Testamento ao Israel de Deus através de Cristo, não de uma substituição de Israel pela Igreja. Deus irá, deveras, cumprir todas as promessas feitas a Israel, muito embora durante a Era da Igreja Ele esteja combinando judeus eleitos e gentios em um corpo único e co-igual (Ef 2.11-12). Se o Novo Testamento de fato afirmasse o supersessionismo, ou a Teologia da Substituição, deveria haver ali uma afirmação clara de tal doutrina. Todavia, não aparece nenhum ensinamento claro dela, a despeito das muitas inferências feitas por intérpretes. Adicionalmente, o Apóstolo Paulo afirma justamente o oposto em Romanos 9-11. Até mesmo um estudioso liberal como Peter Richardson é capaz de reconhecer esta verdade quando diz:
Também há uma descontinuidade entre a Igreja e Israel depois de Cristo. A despeito dos muitos atributos, características, privilégios e prerrogativas deste último, que são atribuídos à primeira, a Igreja não é chamada de Israel no Novo Testamento.
Nenhum comentário:
Postar um comentário